terça-feira, 28 de junho de 2011

A PARTITURA QUE AINDA NÃO TERMINEI


  A bater ruidosamente no vitrô, a chuva trouxe-me insônia e a madrugada surpreendeu-me deslizando os dedos no teclado, sem encontrar inspiração para terminar a partitura de uma canção, começada já durante o dia.
   Desisti, sentei-me à mesa do escritório e dei um mergulho no âmago do próprio ser.
   Nessa  imersão profunda percorri extensos labirintos da memória e descobri acontecimentos, desde há muito soterrados pelo tempo, nos secretos recantos da mente.
   Compreendi que, do passado morto, podem ressuscitar
fragmentos do nosso ontem, para se integrarem ao todo do nosso hoje, pois é na lembrança do que se foi que podemos avaliar e valorizar o mundo das coisas que ainda são. 
    Vi-me quando criança e recordei-me de tudo que sofri,
inclusive o desengano de nunca ter ganhado um brinquedo, nem mesmo no Natal.
   Contudo, também tive saudade, porque me sentia feliz aproveitando os próprios recursos da Natureza, para me divertir. 
 Quem não conhece ou nunca viveu no sertão bruto, como eu, não poderá avaliar as dificuldades, ali enfrentadas, até mesmo por uma criança, que, entre outras coisas, também não tem ninguém com quem brincar.
    Mesmo assim, eu fabricava meus barquinhos, com alguns papéis que vinham com as compras feitas em um lugarejo, cujo carro-de-boi levava mais de dois dias para ir e voltar.  Fazia-os e os deixava deslizarem-se nas águas de um riacho, divertindo-me  com os seus vaivens até que se perdessem na distância.
    Quem sabe por isso é que até hoje construo meu barco de lembranças, e o ponho a navegar às águas de um rio que já deixou de existir. Também usava cascas de peroba, vermelhas e resistentes, a fim de fabricar, muito mal, algo parecido com os “automóveis” que, por uma ou duas vezes, vi na cidade, e passava horas brincando com ele na areia. Sempre descalço, pois não tinha sapatos, vivia com os dedos dos pés esfolados de tantas topadas dadas nas raízes e nos tocos. Quando sangravam, minha mãe colocava sal nos ferimentos e eu saia gritando mato afora, porque doía muito, mas, contudo, saravam.
    Depois de muito tempo ali, à mesa, a olhar o vazio,
percorrendo várias etapas de minha vida, voltei ao presente, deparando-me com tudo diferente, porque depois de muitas lutas e sacrifícios, meus filhos tinham muitos brinquedos, eu um carro de verdade e vários pares de sapatos que não sabia qual usar.
    Tudo o que reencontrei, nessa navegação mental,
fui pondo na mesa da meditação: num canto,
coloquei os meus sonhos e meus esforços que me impulsionaram na vida, para eu vencer; noutro, pus as decepções que me ensinaram a não sonhar em demasia; no centro amontoei as dores que me fizeram forte e, no espaço que restou, dispus as ofensas que me ensinaram a grandeza do perdão e o valor da paciência.
   Meditei...Meditei... E conclui que sou feliz por estar vivo; por encontrar espaço para caminhar e poder caminhar; porque ainda tenho sonhos para sonhar e fé para eu crer que posso continuar colocando lindas notas de amor, de esperança e de paz na partitura inacabada da vida, antes que a morte chegue para rasgá-la.

                                                                                           Samuel Freitas de Oliveira
                                                                                                    Avaré-SP-Brasil

 
 

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