Recentemente visitei uma cidade onde passei boa temporada estudando. Lembrando-me de que, não muito longe dali, havia uma pequena Comarca aonde, aos domingos, ia eu dar uma namoradinha, no dia seguinte botei meu carro na estrada e em pouco tempo estava lá. Confesso que durante o trajeto, minha mente revia as ruas sem calçamento, os botecos espalhados, a única Farmácia do Getúlio (jovem ainda, inteligente , porém mais velho que eu) e, evidentemente, bailou-me na memória a minha linda namorada, professora do Grupo Escolar ( naquele tempo era chamada assim a Quarta Série) , que sempre me esperava ansiosa à porta de sua casa, como se fosse uma colegial. Era uma moça de corpo escultural, educada e tranquila. No princípio tive que me meter em alguns entreveros com os rapazes de lá, que viviam querendo, a todo custo, conquistá-la. Com tempo, entretanto, alguns até se tornaram meus amigos.
Acontece que me esqueci de que o tempo passou também para mim e sonhava em reencontrar tudo como era.
Logo de início, ao fazer o contorno na rodovia para lá chegar, notei que a empoeirada estradinha, aonde corria o ônibus que sempre me levava, estava bem asfaltada. O mangueiral que existia à sua margem cedeu lugar a um luxuoso Motel e o cafezal já não mais existia. Tudo cheirava a progresso. Por ali já comecei a me decepcionar por ser um imbecil a julgar que o tempo tivesse parado, só para me conservar aquele ninho de saudade. Estacionei o carro logo na entrada, embelezada por canteiros, com as mais variadas flores, a fim de contemplar aquele sonhado lugarejo, que agora estava transmutado em verdadeiro presépio enterrado entre as montanhas. O crescimento da população fez-se-me notório e o movimento nas ruas pavimentadas arrancou-me um suspiro de inconformação.
Bastante decepcionado, coloquei o carro em movimento que foi rompendo a distância lentamente. Eu olhava para todos os lados na esperança tola de encontrar algum rosto conhecido, mas o meu gostoso mundinho tinha desaparecido e a fisionomia das pessoas sofrido alterações. Por fim parei e entrei em um Bar com bom visual e seletamente frequentado, disposto a ingerir uma cervejinha gelada, para amenizar um pouco o calor intenso. A um canto, bastante surpreso e feliz ao mesmo tempo, avistei um senhor já bem idoso , sendo por mim imediatamente identificado devido a uma grande macha marrom que trazia na mão esquerda o que lhe custara o apelido de "Manchinha". Evidentemente que ele não me reconheceu . Mesmo assim, pedi licença e me sentei à sua mesa. Olhou-me espantado, mas nada disse. Pedi duas cervejas e dois copos e lhe ofereci uma. Agradeceu-me, demonstrando que tinha conservado a mesma educação, e voltou ao seu mutismo.
---- O senhor não se chama Getúlio?- Arrisquei-me, quebrando o silêncio.
Olhou-me assustado.
----Sim e o senhor, quem é?
Expliquei-lhe que era aquele estudante que ia ali namorar a professora tal, etc.etc. A princípio, olhou-me demoradamente e com os olhos já cansados, apertou-me a mão emocionado. Estávamos há tempo recordando os passados momentos,
falando sobre o que ele fez e o que fiz durante esse longo intervalo. De repente parou de conversar e me fitou mais intensamente:
----Se você e a professora se gostavam tanto, por que nada deu certo entre voces?
Presenteei-o com um largo e galhofeiro sorriso e repondi:
----Não sei como, mas ela descobriu que eu tinha outra namorada na Faculdade e o barraco caiu em cima de mim.
Não contendo a gargalhada, tomou um gole de cerveja para lubrificar a goela e acrescentou:
----Logo que nós nos conhecemos achei você com cara de mulherengo. Continua sendo?
--- Não! Me transformei num homem sério
---Agora me lembro.- continuou rindo duvidoso da minha afirmação – Foi um comentário geral do que aconteceu. Se você voltasse aqui logo em seguida, acho que seria apedrejado. Mas me diga: você veio aqui para rever a cidade, aos velhos amigos ou a ela?
----Bem... – Respondi rindo- Acho que as três coisas. Contudo, sei que vai ser difícil a reencontrar.
----Você já a reencontrou. – Afirmou com cara de quem estava se divertindo intimamente.
---- Não entendi.
Apontando-me o outro lado da rua perguntou-me com os olhos maliciosos:
---- Está vendo aquela senhora, apresentando maior idade do que tem, não mais dona daquele corpinho esbelto, daquele rostinho liso e bonito, sentada naquela escada com os netinhos?
---- Sim.
---- Pois é ela....
---- Não é possível! Ela não morava ali!
---- É possível sim. Depois que os pais faleceram ela se casou, vendeu a casa para não sofrer muito com as recordações ali armazenadas e comprou essa. Tudo muda nesta vida, amigo. É só perguntar isso ao seu espelho e ele confirmará o que lhe digo, apesar de você ser bem mais novo do que eu.
Soltou outra gargalhada e, apertando-me a mão em despedida, saiu auxiliado por sua bengala, falando, como se fosse para si mesmo:
"Tudo muda nesta vida, tudo muda nesta vida...".
"Realmente, - fiquei ali pensando - tudo muda nesta vida, menos as nossas lembranças."